Dias atrás tive uma
grata surpresa: encontrei Dona Germana. Uma senhora gorda, rotunda até,
beirando os 60 e que nunca vi de cabelos soltos. A impressão que tenho, é que
seu cabelo é a única coisa presa que tem. O resto? Tudo solto. Dona Germana
verte qualidades, que no encontro com o outro, dão este contorno especial à sua
pessoa.
Ao ver-me, veio em
minha direção e cobrou-me com “atitude” o fato de estar desaparecido. Já fazia
tempo que não aparecia. Oras, isso não era coisa de se fazer – dizia ela - pois
temos que valorizar aqueles que nos são estimados. Ouvi-a sem mencionar um
“ai”, nem piscar. Gostava de suas palavras! Não sei bem ao certo por quê? Acho
que ela tem o poder de ver a alma, mesmo que não saiba disso.
A alma se vê através
das palavras, especialmente aquelas que servem ao interlocutor. A alma aqui se
equivale às palavras que tocam fundo. Aquelas as quais o sujeito se reconhece.
E como mencioná-las? Aposto que muitos já se questionam em qual capacitação
fazer para adquirir tal habilidade. Como comprá-la?
A resposta que mais
facilmente chegaria a nossa cabeça é: falando. Oras, de tanto tentar, um
momento, se acerta! Chama-se ensaio de tentativa e erro. Pois, para falar à
alma, mais que desfiar palavras, é necessário saber ouvir.
Dona Germana ouvia como
ninguém! Qual técnica? Segredo? Talvez nenhum! Ao que parece, ela efetivamente
nutria um interesse vivo em ouvir as histórias contadas pelos outros que
encontrava vida afora.
Recentemente lia um
artigo sobre pesquisa acadêmica, ao qual o autor expunha sua proposta
metodológica, que assim se resumia: ler o texto tentando fazer as perguntas que
o autor se fez para desenvolver seu raciocínio. Tentar ouvi-lo a partir do
escrito. É fácil constatar que isso é o contrário, quase o oposto, de ler
fazendo suas próprias perguntas a partir do que foi lido! Percebem a
diferença?!
Hoje, a preocupação
geral é em falar bem! Mal se sabe que para fazer vínculo com um outro é
necessário permitir o encontro de dois (ou mais) discursos. E para isso, não
basta falar e pausar. Não é a mecânica da fala que define o encontro. É o
interesse despertado no interlocutor!
Esta especial atenção
as singulares formas de um sujeito dar sentido à sua vida, constitui parte
importante do ofício de um psicanalista. Ele leva isso às últimas
conseqüências, produzindo efeitos que em nenhum outro tipo de conversa se vê. É
a aposta que os humanos podem inventar e reinventar suas vidas a partir do que
está posto enquanto limite, incluindo aí as limitações que dizem respeito a
ouvir e ser ouvido.
A palavra que acerta, nasce do outro e não do que eu
acho sobre o outro. A diferença quase passa desapercebida, mas indica a
existência de vetores que se opõem. Não há palavra que se “encaixe” para um
sujeito, que não saia da relação com alguma parte da própria história do mesmo.
Acho que aí residia a
impressão de “soltura” que brotava de Dona Germana: solta ao vento das palavras
alheias, sem impor um significado de antemão. Pronta para dar lugar a um
sentido que não é óbvio nem tampouco marcado pelos auspícios da mesmice.