domingo, 21 de junho de 2015

palavra ouvida




Dias atrás tive uma grata surpresa: encontrei Dona Germana. Uma senhora gorda, rotunda até, beirando os 60 e que nunca vi de cabelos soltos. A impressão que tenho, é que seu cabelo é a única coisa presa que tem. O resto? Tudo solto. Dona Germana verte qualidades, que no encontro com o outro, dão este contorno especial à sua pessoa.
Ao ver-me, veio em minha direção e cobrou-me com “atitude” o fato de estar desaparecido. Já fazia tempo que não aparecia. Oras, isso não era coisa de se fazer – dizia ela - pois temos que valorizar aqueles que nos são estimados. Ouvi-a sem mencionar um “ai”, nem piscar. Gostava de suas palavras! Não sei bem ao certo por quê? Acho que ela tem o poder de ver a alma, mesmo que não saiba disso.
A alma se vê através das palavras, especialmente aquelas que servem ao interlocutor. A alma aqui se equivale às palavras que tocam fundo. Aquelas as quais o sujeito se reconhece. E como mencioná-las? Aposto que muitos já se questionam em qual capacitação fazer para adquirir tal habilidade. Como comprá-la?
A resposta que mais facilmente chegaria a nossa cabeça é: falando. Oras, de tanto tentar, um momento, se acerta! Chama-se ensaio de tentativa e erro. Pois, para falar à alma, mais que desfiar palavras, é necessário saber ouvir.
Dona Germana ouvia como ninguém! Qual técnica? Segredo? Talvez nenhum! Ao que parece, ela efetivamente nutria um interesse vivo em ouvir as histórias contadas pelos outros que encontrava vida afora.
Recentemente lia um artigo sobre pesquisa acadêmica, ao qual o autor expunha sua proposta metodológica, que assim se resumia: ler o texto tentando fazer as perguntas que o autor se fez para desenvolver seu raciocínio. Tentar ouvi-lo a partir do escrito. É fácil constatar que isso é o contrário, quase o oposto, de ler fazendo suas próprias perguntas a partir do que foi lido! Percebem a diferença?!
Hoje, a preocupação geral é em falar bem! Mal se sabe que para fazer vínculo com um outro é necessário permitir o encontro de dois (ou mais) discursos. E para isso, não basta falar e pausar. Não é a mecânica da fala que define o encontro. É o interesse despertado no interlocutor!
Esta especial atenção as singulares formas de um sujeito dar sentido à sua vida, constitui parte importante do ofício de um psicanalista. Ele leva isso às últimas conseqüências, produzindo efeitos que em nenhum outro tipo de conversa se vê. É a aposta que os humanos podem inventar e reinventar suas vidas a partir do que está posto enquanto limite, incluindo aí as limitações que dizem respeito a ouvir e ser ouvido.
A palavra que acerta, nasce do outro e não do que eu acho sobre o outro. A diferença quase passa desapercebida, mas indica a existência de vetores que se opõem. Não há palavra que se “encaixe” para um sujeito, que não saia da relação com alguma parte da própria história do mesmo.   

Acho que aí residia a impressão de “soltura” que brotava de Dona Germana: solta ao vento das palavras alheias, sem impor um significado de antemão. Pronta para dar lugar a um sentido que não é óbvio nem tampouco marcado pelos auspícios da mesmice.

segunda-feira, 1 de junho de 2015

Ajutório



Fiz um ajutório. Percebi aquele olhar cabisbaixo, mirando-me em ascendente; as mãos esticadas, sentado ao relento...
Sem trocar uma palavra, comovido com a cena, puxei uma nota de valor mediano e lhe entreguei. Senti-me confortável, pois havia feito algo. Ahh, sem falsa modéstia, se todos fossem assim como eu, o mundo seria diferente.

Quem é ajudado num ato de ajutório? O que aquele que ajuda enxerga de si em outrem?


Algo, de fato, aconteceu. Meu mundo ficou diferente. Ajudei ao ver naquele sujeito algo estranhamente familiar.
Fiz-me em ajutório.